terça-feira, 27 de novembro de 2012

Catulo da Paixão Cearense

(São Luís do Maranhão/MA, 8 de outubro de 1863 — Rio de Janeiro/RJ, 10 de maio de 1946)

Filho do ourives Amâncio José da Paixão Cearense e de Maria Celestina Braga, o menino Catullo nasceu em um sobrado de frente azulejada na antiga rua Grande, número 66, hoje rua Oswaldo Cruz. Correu pelas ruas e casarões da sua cidade natal (São Luis) com os irmãos Gil e Gerson até os dez anos, quando se mudou com os pais, para a fazenda dos avós paternos, no sertão cearense.

No contato com a gente simples, bebendo desta sabedoria e se fartando deste imaginário matuto, o futuro violeiro soube coletar os mais puros motivos e recria-los, além de registrar as peculiaridades lingüísticas do caboclo da caatinga. Suas modinhas, que a tantos agradaram no ocaso da monarquia e nas primeiras décadas da república, refletiam também o estado de espírito do boêmio, sempre a declamar apaixonado e muitas vezes desprezado pela sua amada.

Sua presença cultural é tão grande na história da música brasileira deste período, que o escritor Lima Barreto chegou a criar o personagem Ricardo Coração dos Outros, um violonista compositor de modinhas e que é um dos coadjuvantes do clássico pré-modernista "Triste Fim de Policarpo Quaresma".

Por citar o Rio de Janeiro, uma das mudanças mais marcantes na vida do artista aconteceria em 1880, quando a família se muda para a sede do império deslumbrada com Paris e tentando imitar os ares progressivistas da belle èpoque francesa. Uma vez lá, o violonista iria presenciar importantes fatos políticos como a Proclamação da República, e as subsequentes crises políticas dos presidentes Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto.

Lá, em companhia dos flautistas Joaquim Callado, do violonista Anacleto de Medeiros e do cantor Cadete, o poeta trocou a flauta -até chegar no Rio ele só tocava este instrumento - pelo violão, instrumento ao qual foi iniciado por um estudante de medicina.

Mas o começo não foi de glamour. Assim que chegaram, morreu a mãe, vindo o pai a falecer três anos depois.

O boêmio teve que trabalhar. De dia pegava no pesado no cais, onde era estivador e à noite embaixo das sacadas, entoando suas canções.

Convidado para uma festa na casa do senador Gaspar de Silveira Martins, ele agradou e, a mulher de Silveira Martins, em retribuição, quis ajudá-lo. Catulo arriscou um pedido de emprego. Ganhou um convite para ser professor dos filhos do casal. Aceitou o emprego e mudou-se para a casa do senador, na Gávea.

Enfim, uma vida melhor. De dia, aulas; à noite, seresta. Tudo ia bem, até que Catulo, que já tinha fama de mulherengo, encontra em seu quarto uma moça semi-despida que faz um verdadeiro escândalo se dizendo violentada pelo poeta. Depois de uma passagem na delegacia e outra na igreja, Catulo casa. Só depois fica sabendo que tudo não havia passado de brincadeira de amigos. Era uma farsa, sendo que seu casamento nem constava nos assentamentos da igreja paroquial.

A partir de então, é a vez das musas. "Coleira", único amor de sua vida, cujo nome não se conhece, era segundo o próprio poeta, linda, de olhos angelicais, filha de um senador de Goiás. Para ela, Catulo escreveu entre outras "Ave Maria Humana" e I"mortalidade". Mas houve outras musas. E outras poesias. Para a atriz Apolônia Pinto, sua conterrânea, ele escreveu "Os olhos dela", que por azar teve que dedicar a mulher de um amigo, pois este seu amigo chegou em casa junto com Catulo de madrugada e a mulher começou a dar a bronca. Catulo para aliviar a situação, cantou a canção "Os olhos dela". Isso serviu de carta de alforria para o amigo, pois o poeta, após ter cantado, falou que havia feito a música para ela.

Todos os cronistas e contemporâneos dizem que "Coleira" foi de fato o grande amor do poeta mas nada conseguindo, ele acabou por isolar-se no subúrbio de Piedade, onde passou a lecionar num colégio que fundou.

O casamento de Catullo com o violão que o imortalizou, se deu aos 19 anos, quando largou os estudos para se dedicar ao instrumento tido como propício das "rodas de capadócio". Quem fosse de boa família jamais andaria com um desclassificado que ostentasse um pinho!

No dia 5 de julho de 1908, Catullo revolucionou os padrões musico-culturais da época, quando a convite do Maestro Alberto Nepomuceno, fez um recital de violão no templo da música erudita de tradição européia ( Instituto Nacional de Música ): o sucesso foi geral e a platéia o aclamou.

Houve protestos, principalmente do crítico Oscar Guanabarino, um dos mais respeitados de então. Ele considerava uma profanação a presença de um violão num salão de música erudita. No prefácio do seu livro Modinhas (Livraria do Império, 1945) o poeta conta, com sua peculiar vaidade, como foi aquela sessão: "Músicos, literatos, médicos, jornalistas, advogados, engenheiros, professores, pintores, o escol de nossa sociedade, diplomatas como o conde Prozoor, então ministro plenipotenciário da Rússia, tudo se encontrava ali no meio da massa popular. Inúmeras pessoas ficaram de pé, por não haver mais lugar. Os aplausos eram tão retumbantes que se ouvia da rua. O crítico musical Oscar Guanabarino, que havia escrito um artigo atacando o maestro Nepomuceno, por haver permitido que eu introduzisse o violão naquele templo onde só pisavam celebridades, depois do meu triunfo, confessou sua falta, saudando-me com palmas delirantes". E a estrela do poeta continuava a brilhar.

Neste momento a modinha ganhou ares de civilidade, e suas riquezas melodico-harmônicas conquistaram, o gosto da classe dominante.

Em 1910, o maranhense extrairia da melodia do côco "É de Humaitá" a sua "Luar do Sertão", que se tornou imediatamente um clássico da nossa música. A polêmica foi instaurada porque o violonista João Pernambuco reclamou autoria da música o que ainda hoje é discutido entre os seus historiadores.

Nas décadas seguintes, o tempo só fez coroar aquele que tirou o violão dos ambientes sórdidos e ajudou na consolidação da modinha que, ao lado do lundu, foram os primeiros gêneros musicais surgidos no Brasil.

Autodidata, aprendeu português e matemática, depois francês, língua que conhecia bem, a ponto de fazer traduções de poetas que estavam em moda na mudança do século. Entretanto, o gosto pela literatura francesa não fez com que ele se transformasse em um parnasiano a mais, Catulo havia guardado a influência da adolescência passada no Nordeste e, ao contrário do que então se cantava, compôs modinhas bem brasileiras.

Quando cantou e declamou pela primeira vez para um chefe de Estado, Nilo Peçanha, seus críticos espalharam que Catulo havia entrado no Catete pelos fundos. Mas em 1914 ele dá o "cala boca". Convidado pelo então presidente da República, Marechal Hermes, o poeta sobe, de violão em punho, as escadarias do Catete para um novo momento de glória.

Anos depois, a mulher do presidente, Nair de Tefé (que se tornou conhecida como caricaturista sob o pseudônimo de Rian) deporia sobre os momentos passados em Palácio pelo poeta: "Essa audição de Catulo, no Palácio do Catete, constituiu o maior sucesso a que um verdadeiro artista poderia aspirar em toda sua vida. Catulo, ao término de cada canção que interpretava, recebia da culta assistência uma ovação delirante. Todos o aplaudiram de pé". Essa audição valeu-lhe um emprego na Imprensa Nacional.

Dentre os seus divulgadores principais está o cantor carioca Vicente Celestino, que fez sucesso entre os anos de 37 e 42, interpretando Catullo, além de Paulo Tapajós, Orlando Silva e Carlos José.

Apesar de todo o sucesso obtido - não significando retorno finaceiro - houve também os inevitáveis desafetos, como foi o caso do violonista João Pernambuco, que também reivindicou autoria de "Cabôca de Caxangá".

A última homenagem digna de registro que se tem notícia foi a regravação de Luar do Sertão, feita pela dupla Luiz Gonzaga e Milton Nascimento em 1986 para um dos últimos discos do rei do baião.

Ainda assim, publicou dez livros de canções com modinhas em estrutura semelhante aos cordéis com letras retratando o falar matuto.

O registro de "Talento e Formosura" - sua e de Edmundo Otávio Ferreira- feito pelo cantor Mário Pinheiro em 1906, constitui-se num dos itens mais raros da discografia nacional. Verdadeiro marco na afirmação de uma identidade regional na embrionária indústria cultural brasileira, a gravação deste acetato de 78 rpm se deu graças à instalação do primeiro selo de música no Brasil: a Casa Edison.

Mas a primeira música de tonalidades rítmicas regionalistas, lembrando os folguedos do "Norte" foi Caboca de Caxangá, gravado no mesmo selo em 1913 com a denominação de batuque sertanejo. O registro, feito pela dupla Baiano e Júlia Martins, constitui-se portanto no momento zero em que a incipiente indústria fonográfica categorizou um segmento musical com referência nítida à região de onde teria vindo.

Em algumas composições teve a colaboração de alguns parceiros: Anacleto Medeiros, Ernesto Nazareth, Chiquinha da Silva, Francisco Braga e outros. Como interprete, o maior tenor do Brasil, Vicente Celestino .

Suas mais famosas composições são Luar do Sertão, de 1908, que na opinião de Pedro Lessa é o hino nacional do sertanejo brasileiro, e Flor amorosa (sem data).

O cancioneiro de Catulo, com letras que exprimem a ingenuidade e pureza do caboclo, cativou a sensibilidade do povo e levou Mário de Andrade a classificar o autor como "o maior criador de imagens da poesia brasileira".

Catulo da Paixão Cearense, homem de muitos inimigos e adorado pelo povo. Inimigos porque desfiavam dele um rosário de mal versão que ia do vaidoso, passando pelo mulherengo, até chegar ao cabotino. Adorado por ter sido um dos poucos, talvez o único, poeta popular no Brasil que, em vida, recebeu todas as glórias, todas as honras e uma adoração popular tão grande.

Isso porque Catulo usou e abusou de toda a sonoridade que o sotaque nordestino lhe proporcionou, soube colocar em versos simples onde era o lugar de por versos simples. Tinha faro. Sabia ouvir, como ninguém mais, o rumor da terra.

Alguns de seus biógrafos dão como data do seu nascimento 31 de janeiro de 1866, mas por equívoco: essa data foi arranjada para uma nomeação no serviço público, pois ele precisava remoçar três anos para conseguir a nomeação.

Como sempre acontece com a maioria dos grandes artistas, Catullo da Paixão Cearense morreu pobre em 10 de maio de 1946. Seus direitos autorais, possível e única fonte de renda, fora vendida a um amigo por preço irrisório. Findou seus dias morando numa casa de madeira no subúrbio carioca de Engenho de Dentro.

Nos últimos dias de vida, Catulo morou num barracão na rua Francisco Méier, hoje rua Catulo da Paixão Cearense, no Engenho de Dentro, subúrbio do Rio de Janeiro. Ao barracão deu o nome de "Palácio Choupanal" e nele o poeta recebia velhos amigos, antigos companheiros da estiva e visitantes ilustres, entre eles, Monteiro Lobato, o poeta espanhol Salvador Rueda, o tenor e médico mexicano Alfonso Ortiz Tirado. Grande conversador, bom bebedor de cerveja, Catulo vivia sempre com a mesa cheia, e recebia as visitas de pijama e chinelos. Aliás, ele só conhecia dois trajes: ou o pijama ou o terno e gravata, nada de meios termos. 

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